Catolicismo Romano

FRATELLI TUTTI: Em nova encíclica, Papa critica populistas e sistema econômico

O Vaticano divulgou a terceira encíclica assinada pelo papa Francisco, que aborda os temas da fraternidade e da amizade social e traz reflexões inspiradas pela pandemia do novo coronavírus.

Chamado “Fratelli tutti” (“Todos irmãos” em italiano), uma citação literal de um texto de São Francisco de Assis, o texto reúne algumas das principais bandeiras do pontificado de Jorge Bergoglio, como as críticas ao nacionalismo, ao populismo, ao individualismo e à “cultura dos muros”.

Além disso, defende o direito às migrações e cobra uma reforma da Organização das Nações Unidas e do sistema financeiro mundial. A encíclica é divulgada no Dia de São Francisco de Assis e foi assinada pelo Papa no último sábado (3), durante uma missa na cripta onde está o túmulo do “santo dos pobres” e padroeiro dos animais e do meio ambiente – São Francisco também é a inspiração para o nome de Bergoglio como Pontífice.

Anteriormente, o argentino já havia publicado as encíclicas “Lumen Fidei” (“Luz da Fé”), iniciada por Bento XVI, e “Laudato Si'” (“Louvado Sejas”), a primeira na história da Igreja Católica dedicada ao meio ambiente.

“‘Fratelli tutti’, escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho”, diz o Papa no início da encíclica, defendendo a vivência de uma “fraternidade aberta” e que permita “reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente do ponto da terra onde cada um nasceu ou habita”.

Ainda nos primeiros parágrafos, Francisco diz que, enquanto redigia o texto, “irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19, que deixou a descoberto nossas falsas seguranças”.

“Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos”, afirma.

A encíclica é dividida em oito capítulos, sendo que o primeiro, chamado “As sombras dum mundo fechado”, dedica-se a expor tendências que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal defendida por Francisco. Segundo o Papa, o mundo atual tem dado sinais de “regressão”, com o ressurgimento de “conflitos anacrônicos que se consideravam superados” e de “nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”.

“Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. ‘Abrir-se ao mundo’ é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças.

Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes econômicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único”, escreve Bergoglio.

Ainda no primeiro capítulo, o Papa critica a polarização da política em muitos países. “Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte”, afirma.

De acordo com Bergoglio, o progresso tecnológico não serviu para superar “medos ancestrais” e evitar o reaparecimento de uma “cultura dos muros” para “impedir o encontro com outras pessoas”. “E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes”, diz o Papa, citando um discurso a professores feito em abril de 2019.

Na encíclica, Francisco argumenta que esse medo e a insegurança de pessoas que se sentem abandonadas pelo “sistema” criam um “terreno fértil para as máfias”, que se apresentam como “protetoras dos esquecidos” enquanto “perseguem seus interesses criminosos”.

Segundo o Papa, a pandemia do novo coronavírus despertou a “consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos”.

“Alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência”, ressalta.

Francisco também alertou para o risco de se “esquecer as lições da história” e de cair em um “consumismo febril” e “novas formas de autoproteção egoísta” após o fim da pandemia. “Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos”, diz.

No quinto capítulo, chamado “A política melhor”, o Papa faz duras críticas ao populismo, que “despreza” os mais vulneráveis, mas “se serve deles para seus fins, ou em formas liberais ao serviços dos interesse econômicos dos poderosos”.

Segundo Bergoglio, existem “líderes populares capazes de interpretar o sentir de um povo, sua dinâmica cultural e as grandes tendências de uma sociedade”. No entanto, esse sentimento pode “degenerar em um populismo insano quando se transforma na habilidade de alguém atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder”.

“Os grupos populistas fechados deformam a palavra ‘povo’, porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De fato, a categoria ‘povo’ é aberta. Um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses assumindo em si o que é diverso”, argumenta.

Francisco também faz críticas às “visões liberais individualistas” que rejeitam a “categoria de povo” e consideram a sociedade uma “mera soma de interesses que coexistem”. “Em certos contextos, é frequente acusar como populistas quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade”, escreveu, acrescentando que a crença de que o mercado “resolve tudo” é um “dogma da fé neoliberal”.

“Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’ – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social. […] A especulação financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos”, diz.

Na encíclica, Francisco ressalta que “a fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro, e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos”.

O Papa também defende os “movimentos populares que reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos”.

“Na realidade, [os movimentos populares] criam variadas formas de economia popular e de produção comunitária. É necessário pensar a participação social, política e econômica segundo modalidades tais que incluam os movimentos populares. […] Com eles, será possível um desenvolvimento humano integral, que implica superar a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres. […] Embora incomodem e mesmo se alguns ‘pensadores’ não sabem como classificá-los, é preciso ter a coragem de reconhecer que, sem eles, a democracia atrofia-se”, acrescenta.

Além disso, o argentino defende a “função social de qualquer forma de propriedade privada”, cujo direito a “tradição cristã” nunca reconheceu como “absoluto ou intocável”. “O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de toda a ordem ético-social, é um direito natural, primordial e prioritário. O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, […] mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática”, argumenta.

Ainda no quinto capítulo, Francisco prega a reforma da ONU e da “arquitetura econômica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações”. “É necessário evitar que esta Organização [ONU] seja deslegitimada, pois os seus problemas ou deficiências podem ser enfrentados e resolvidos em conjunto”, diz.

O Papa também dedica parte da encíclica à defesa daqueles que são forçados a abandonar suas casas para encontrar proteção ou uma vida melhor em outros países. Segundo Bergoglio, regimes políticos “populistas” e abordagens “econômico-liberais” pregam evitar “a todo o custo a chegada de pessoas migrantes”.

“Simultaneamente argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas.

Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize'”, afirma.

Segundo o Pontífice, os fenômenos migratórios “suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos”. “Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os protagonistas da sua própria promoção. Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé”, escreve Francisco.

Na visão do Papa, um povo só é fecundo quando sabe “integrar criativamente no seu seio a abertura aos outros”.

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