Catolicismo Romano

Os cardeais Roche e Cantalamessa confirmam: “Rito de Paulo VI corresponde a uma nova teologia”

(Por José Antonio Ureta). Os cardeais Arthur Roche e Raniero Cantalamessa reconheceram indiretamente, e talvez sem querer, o que os críticos do Novus Ordo Missae de Paulo VI vêm dizendo há mais de cinquenta anos: que o novo rito corresponde a uma nova teologia que “representa, tanto no seu conjunto como nos detalhes, um impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa, tal como foi formulada na sessão XXII do Concilio Tridentino” [1].

Em 19 de março, questionado por seus compatriotas na rádio BBC sobre as restrições à celebração do rito tradicional latino, o prefeito do Dicastério para o Culto Divino declarou: “Como vocês sabem, a teologia da Igreja mudou. Antes, o padre representava, à distância, todo o povo: [os fiéis] eram canalizados por uma pessoa que sozinha celebrava a missa. Não é apenas o sacerdote que celebra a liturgia, mas também aqueles que são batizados [junto] com ele; nada menos!” [2] (Os destaques em negrito são sempre nossos).

Alguns dias depois, no quarto sermão da Quaresma para a Cúria Romana, o cardeal Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia, destacou:

“A liturgia católica se transformou, em pouco tempo, de ação com forte traço sacral e sacerdotal, a ação mais comunitária e participada, onde todo o povo de Deus tem a sua parte, cada um com o próprio ministério. […]

No início da Igreja e para os três primeiros séculos, a liturgia é realmente uma “liturgia”, isto é, ação do povo (laos, povo, está entre as componentes etimológicas de leitourgia). De São Justino, da Traditio Apostolica de Santo Hipólito e outras fontes do tempo, obtemos uma visão da Missa certamente mais próxima àquela reformada de hoje, do que aquela dos séculos que temos às costas. O que aconteceu depois de então? A resposta é, em uma palavra que não podemos evitar, mesmo se exposta a abuso: clericalização! Em nenhum outro âmbito ela agiu mais vistosamente do que na liturgia.

“O culto cristão e, particularmente, o sacrifício eucarístico, transformou-se rapidamente, no Oriente e no Ocidente, de ação do povo em ação do clero.” [3].

É consistente com o dogma católico dizer que o sacrifício eucarístico é uma ação realizada pelo povo e que se tornou primordialmente uma ação do clero devido a uma clericalização despropositada? Claro que não. Na Santa Missa, o celebrante não é um mero presidente da assembleia, mas o único sacerdos que oferece o sacrifício in persona Christi.

Para dirimir qualquer dúvida, basta ler o que Pio XII disse sobre isso em sua encíclica Mediator Dei: [4]

“Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus”(n° 35).

Por isso, na Santa Missa, “o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De missa II c.l.). O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).

Sem dúvida, é importante que os fiéis presentes participem do sacrifício do altar com os mesmos sentimentos que Jesus Cristo teve na Cruz, e que ofereçam esse sacrifício juntamente “com Ele e por Ele, santificando-se com Ele” (nº 73).

Mas, para evitar qualquer mal-entendido, Pio XII reitera que “o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que eles gozem de poderes sacerdotais”. A insistência do Papa Pacelli foi necessária, porque mesmo assim alguns afirmaram erroneamente “que o preceito que Jesus Cristo deu aos Apóstolos em sua última ceia, para fazerem o que Ele mesmo havia feito, se refere diretamente a todos os fiéis”, e julgaram que “o sacrifício eucarístico é uma concelebração estrita” (n° 75).

Contra este erro, ensinava a Mediator Dei que “a imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis” (n° 83).

Não se pode assim condenar missas privadas sem a participação do povo, nem a celebração simultânea de várias missas privadas em altares diferentes, invocando erroneamente “a índole social do sacrifício eucarístico” (n° 86).

Estes trechos da grande encíclica litúrgica de Pio XII mostram que, independentemente do que pensa o cardeal Cantalamessa, a vituperada “clericalização” da Santa Missa não foi fruto de uma adulteração humana produto da história, mas de um desígnio divino. Jesus instituiu o sacrifício eucarístico e o sacerdócio ministerial simultaneamente, e concedeu a seus ministros o privilégio exclusivo de renová-lo nos altares de maneira incruenta até a consumação dos tempos.

Deve-se também notar que o Pregador da Casa Pontifícia colocou suas sandálias de capuchinho em areia movediça ao declarar que as primeiras comunidades cristãs tinham “uma visão da Missa certamente mais próxima àquela reformada de hoje, do que aquela dos séculos que temos às costas”. Se isso fosse verdade, haveria duas possibilidades:

  • No melhor dos casos, a visão da Missa corporificada no novo rito de Paulo VI representaria uma regressão teológica, porque do começo do século terceiro à segunda metade do século XX houve um “desenvolvimento orgânico” do Depósito da Fé (isto é, uma melhor compreensão teológica) no que diz respeito ao sacerdócio e ao Sacrifício do Altar. Por isso, a “superação do passado recente para recuperar o mais antigo e originário” não é um “enriquecimento” [5], como afirmou o cardeal Cantalamessa, mas sim um empobrecimento, pois priva a Igreja da luz que emanou das definições dogmáticas de vários concílios ecumênicos sobre a Missa e o sacerdócio (o Segundo de Nicéia, o IV de Latrão, o de Florença, e principalmente o de Trento), assim como das fulgurações de alguns gigantes da teologia e da devoção eucarística como Santo Tomás de Aquino, São Roberto Belarmino, São Leonardo de Porto Mauricio e São Pedro Julião Eymard.
  • No pior dos casos, a visão da Missa corporificada no novo rito de Paulo VI representaria uma ruptura teológica com os dogmas de fé definidos nos “séculos que temos às costas”, os quais escoram a concepção supostamente clericalista do sacerdócio e da Eucaristia corporificada na Missa tradicional, cuja estrutura, até o Novus Ordo Missae do Papa Paulo VI de 1969, permaneceu praticamente inalterada desde as modificações feitas pelos Papas São Dâmaso I (m. 384) e São Gregório I (m. 604).

O cardeal Arthur Roche parece optar por esta segunda solução, já que, para ele, “a teologia da Igreja mudou”.

Porém, o novo rito de Paulo VI não representou uma mudança na teologia somente em relação à suposta clericalização da antiga liturgia. Após a publicação de Desiderio desideravi, mostrei que os princípios invocados pelo Papa Francisco em defesa da reforma litúrgica contradizem a Mediator Dei em vários aspectos. Em particular, destaquei os seguintes:

  1. A inversão sistemática entre o objetivo primário de adorar a Deus e o objetivo subsidiário de santificar as almas [6];
  2. O obscurecimento da centralidade da Paixão redentora, em benefício da Ressurreição gloriosa [7];
  3. A acentuação do memorial em detrimento do sacrifício [8]; e
  4. A diminuição do sacerdote celebrante, que se torna presidente da assembleia [9].

Diante dessas mudanças radicais, eu perguntava se a nova missa de Paulo VI ainda correspondia à fé de sempre [10]. Os cardeais Roche e Cantalamessa acabam de reconhecer que de fato ela corporifica uma “visão” diferente da liturgia, porque a teologia da Igreja teria mudado.

Antes que esses ilustres cardeais, dois conspícuos representantes do progressismo francês, Alain e Aline Weidert, haviam declarado a mesma coisa. Eles publicaram no jornal La Croix uma apologia do motu proprio Traditionis custodes, sob o expressivo título: “La fin des messes d’autre ‘foi’, une chance pour le Christ!” (O fim das missas de outra fé, uma oportunidade para Cristo).

Eles não abordaram a suposta clericalização da liturgia tradicional em detrimento do povo, mas se centraram na transição da Missa como sacrifício propiciatório para a Missa como celebração eucarística e jubilosa da Aliança:

O espírito da liturgia de outra fé, a sua teologia, as normas da oração e da missa de antes (a lex orandi do passado), não podem mais, sem discernimento, continuar a ser as normas da fé de hoje, o seu conteúdo (nossa lex credendi). […]

“Uma fé que ainda deriva da lex orandi de ontem, que fez do catolicismo a religião de um deus perverso que mata o filho para aplacar sua cólera, religião de perpétuo mea culpa e reparação, levaria a um antitestemunho da fé, a um imagem desastrosa de Cristo. […]

“Nossas Missas, infelizmente, ainda estão marcadas com um forte caráter sacrificial ‘expiatório’ com finalidade ‘propiciatória’ para aniquilar os pecados (mencionados 20 vezes), para alcançar nossa salvação e salvar almas da vingança divina. ‘Propiciação’ que as comunidades Ecclesia Dei defendem com unhas e dentes, com seus sacerdotes votados ao sacrifício, treinados para rezar o Santo Sacrifício da Missa, verdadeira imolação”. […]

Prosseguem os Weidert:

“Se quisermos poder oferecer no futuro uma fé e uma prática cristã atraentes, devemos nos aventurar, através da reflexão e da formação, a descobrir um fundo ainda desaproveitado (e inexplorado) de salvação por Jesus, não colocando em primeiro lugar sua morte contra (‘pelos’) pecados, mas sua existência como uma Aliança. Porque ‘a sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação’ (Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 5). A opção é clara! Não entre sensibilidades e estéticas religiosas diferentes, mas entre intermináveis sacrifícios para apagar os pecados e Eucaristias que selam a Aliança/Cristo” [11].

Quanta razão teve o Papa Francisco ao afirmar em Desiderio desideravi que “seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes gostos em relação a uma determinada forma ritual”. [12]

De fato, os cardeais Roche e Cantalamessa acabam de unir suas vozes, volens nolens, à de modernistas enragés como o casal Weidert, julgando que o rito de São Pio V é a missa de “outra fé.

Assim sendo, o Vaticano não pode estranhar que a fidelidade ao Depósito da Fé obrigue os católicos tradicionalistas a resistir resolutamente a uma legislação litúrgica ilegítima, porque procura impor uma construção litúrgica artificial (Ratzinger dixit), a qual se desvia em pontos essenciais dos dogmas definidos no Concílio de Trento, e porque visa restringir progressivamente, até à sua extinção, um rito sagrado da Missa que se desenvolveu harmoniosamente ao longo dos séculos.

Notas

  1. Cardeais A. Ottaviani e A. Bacci, carta a Paulo VI, introdução ao Breve Estudo Crítico do Novus Ordo Missae
  2. “Sunday”, B.B.C., 19 de março de 2023, https://www.bbc.co_uk/sounds/play/m001k7kb, entre os minutos 10:37 e 11:02.
  3. https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-03/iii-pregacao-da-quaresma-2023-mysterium-fidei-texto-integral.html
  4. Pio XII, encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947), https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-dei.html
  5. Cantalamessa, https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-03/iii-pregacao-da-quaresma-2023-mysterium-fidei-texto-integral.html
  6. Uma crítica doutrinária de Desiderio desideravi: A primazia do culto de adoração. https://fratresinunum.com/2022/08/18/uma-critica-doutrinaria-de-desiderio-desideravi/
  7. O obscurecimento da centralidade da Paixão redentora, https://fratresinunum.com/2022/08/20/obscurecimento-da-centralidade-da-paixao-redentora/
  8. Do sacrifício do Calvário ao memorial da Presença, https://fratresinunum.com/2022/08/26/do-sacrificio-do-calvario-ao-memorial-da-presenca/
  9. De sacerdotes do Sacrifício a presidentes de assembleias, https://fratresinunum.com/2022/08/30/de-sacerdotes-do-sacrificio-a-presidentes-de-assembleias/
  10. O Novus Ordo como arma para promover “outra fé”?, https://fratresinunum.com/2022/09/10/o-novus-ordo-como-arma-para-promover-outra-fe/
  11. Aline e Alain Weidert, em La Croix, 10/02/2022,
  12. https://www.vatican.va/content/francesco/es/apost_letters/documents/20220629-lettera-ap-desiderio-desideravi.html, nº 31.

Publicado originalmente em inglês no site Rorate Caeli.

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