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Com quase 100 mil cópias vendidas, escritora italiana Elena Ferrante vira “febre” no Brasil

No mundo de superexposição em que vivemos, é curioso notar que uma escritora que se mantém anônima há mais de duas décadas tornou-se um dos maiores fenômenos literários dos últimos tempos. Não se sabe muito sobre a italiana Elena Ferrante.

Todos os aspectos de sua identidade permanecem encobertos pelo véu do mistério. Mas há algumas certezas. Uma delas é sua escrita poderosa e viciante. A outra é que seus livros vendem. E vendem muito.

Estima-se que sua obra mais célebre, a chamada "tetralogia napolitana", já comercializou mais de 2 milhões de exemplares no mundo todo. O Brasil não fica fora desse contexto. Publicados pela Biblioteca Azul, selo da Editora Globo, os três primeiros volumes da série – "A amiga genial", "História do novo sobrenome" e "História de quem foge e de quem fica" – e o romance "Dias de abandono" já alcançaram a marca de 94 mil cópias vendidas.

O quarto e último capítulo da tetralogia, "História da menina perdida", já está no forno e deve ser lançado no primeiro semestre do ano que vem. Nos últimos meses, o mercado brasileiro vem sendo inundado pelos livros de Ferrante. Quem entrar nas maiores livrarias do país encontrará também os títulos "A filha perdida" e o infantil "Uma noite na praia", ambos da editora Intrínseca e sem estimativa de vendas até o momento. Desde que a italiana estreou no Brasil, em maio de 2015, já são seis obras publicadas no país, e pelo menos outras três serão lançadas em 2017.

Mas o que explica todo esse frenesi em torno de Ferrante? "Tem a ver com a narrativa dela, bastante realista, e sua habilidade muito grande de contar uma historia. É uma narradora mulher que traz para o centro da literatura contemporânea alguém que está de igual para igual com outros escritores. Fora isso, também há o fato de que ela se mantém alheia como pessoa, o que acaba gerando uma discussão sobre o papel do escritor", responde à agência Ansa Thiago Barbalho, editor dos livros da italiana na Biblioteca Azul.

O selo da Globo largou na frente ao conquistar o direito de publicar a popular tetralogia napolitana, mas em 2016 ganhou a concorrência da Intrínseca, que além de "A filha perdida" e "Uma noite na praia", prepara o lançamento de mais dois títulos para o ano que vem. O primeiro, "L'amore molesto", está previsto para março, enquanto o segundo, a coletânea dita autobiográfica "La frantumaglia", ainda não tem data definida.

"Ela chegou ao Brasil colocada em um degrauzinho um pouco acima do mundo comercial, mas o modo como ela escreve, a temática dos livros dela, são muito acessíveis. Se você tira a camada literária de cuidado e refinamento, sobra uma história fantástica e que atinge muita gente", afirma Danielle Machado, editora de títulos internacionais da Intrínseca.

Sucesso tardio

Elena Ferrante lançou seu primeiro livro, o premiado "L'amore molesto", em 1992, porém o segundo, "Dias de abandono", saiu apenas 10 anos depois. Ambos foram adaptados para o cinema e exibidos, respectivamente, nos festivais de Cannes e Veneza, contribuindo para aumentar a fama da escritora em seu país.

Mas ela deixaria de ser um fenômeno italiano para se tornar global somente em 2011, com a publicação de "A amiga genial", que recebeu críticas bastante positivas nos Estados Unidos e deu início à "Ferrante Fever" ("Febre de Ferrante") em solo norte-americano. A tetralogia conta a história de duas amigas da periferia de Nápoles, Lenù (apelido de Elena) e Lila, escrita pela primeira após o súbito desaparecimento da segunda.

A narração começa com Lenù recebendo a notícia de que Lila havia sumido sem deixar rastros, cumprindo um antigo desejo de "desmaterializar-se". Irritada, decide colocar em preto no branco toda a trajetória de sua amizade, desde a primeira infância até a velhice.

Como pano de fundo, Ferrante descreve as tensões enfrentadas pela Itália e por Nápoles no pós-Guerra, como os anos de chumbo, o fascismo, o comunismo e o crescimento da Camorra, e a tentativa das duas amigas, cada uma a seu modo, de se libertarem da vida de miséria, exploração e violência à qual nasceram condenadas.

Tudo isso impulsionado por um estilo claro e intenso. Sentimentos e fatos do cotidiano são narrados com franqueza, realismo e, coisa rara na história da literatura, sob o ponto de vista feminino. "É uma narradora que traz a discussão sobre a figura feminina no mundo. A complexidade da escrita dela é parte da razão desse alcance tão grande", acrescenta Barbalho.

O anonimato

Seja por timidez, traço característico da personagem Lenù, seja por dizer que seus livros devem falar por si sós, Ferrante não revela sua verdadeira identidade. Só faz entrevistas por e-mail, não participa de eventos para promover suas obras. Sobre ela, sabe-se quase nada. Acredita-se que tenha nascido em Nápoles, já que conta com riqueza de detalhes a vida na periferia da cidade, e que seja mulher, por usar a mesma precisão para falar sobre as angústias do universo feminino.

O mistério em torno da italiana acabou se tornando um dos motivos de seu sucesso e, ironicamente, um apelo publicitário que atrai leitores, muitas vezes mais do que a própria história narrada nos romances. "Claro que tudo pode ser visto como mercadológico, mas é algo decidido desde o começo. Não acho que seja marketing, é uma decisão até muito arriscada", diz Barbalho, da Biblioteca Azul.

A busca por sua identidade atingiu o auge em outubro passado, quando o jornalista italiano Claudio Gatti, do diário econômico "Il Sole 24 Ore", publicou que Ferrante seria Anita Raja, tradutora que colabora com a Edizione E/O, a mesma editora da escritora. Em sua investigação, o repórter descobriu que Raja recebera remunerações incompatíveis com o trabalho de tradução e que esses pagamentos cresceram paralelamente ao aumento do sucesso de Ferrante.

Seu marido, o escritor napolitano Domenico Starnone, já havia sido apontado anteriormente como a possível verdadeira identidade da autora devido aos estilos parecidos. As conclusões da reportagem foram rechaçadas pela Edizione E/O, que ainda criticou a suposta intromissão do jornalista, assim como fãs no mundo inteiro.

Para o cineasta Roberto Faenza, que adaptou "Dias de abandono" para as telonas, não há mal nenhum na investigação conduzida por Gatti. "Toda a intelligentsia italiana se colocou contra esse jornalista, mas o público estava curioso para saber quem é Ferrante, então se alguém responde, não me parece uma coisa feia", diz o diretor à Ansa.

Ele conta que teve uma "relação estranha" com aquela que define como uma "grandíssima escritora". Segundo Faenza, a Edizione E/O lhe pedira para enviar o filme à autora antes do lançamento, e ela lhe respondeu com duas ou três cartas batidas à máquina. Sem assinatura. "Quando se chega à paranoia de não assinar porque pensa que, pela análise da assinatura, alguém descobre se é masculina ou feminina, não me parece uma coisa bela. Por isso sou da opinião de que esse jornalista fez bem", acrescenta.

O fato inegável é que a suposta revelação da identidade de Ferrante aumentou o interesse em torno de sua obra e mostrou que, ao mesmo tempo em que os leitores querem saber quem está por trás do pseudônimo, eles também não o querem. Se Lenù escreve para não deixar que sua amiga Lila desapareça, mencionar o real nome de Elena Ferrante poderia fazê-la sumir para sempre. (Ansa)

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